“O meu cinema é um cinema de representatividade” - entrevista com o cineasta Cícero Filho

Elenco do filme "Ai que vida!" - Imagem: CineBrasil.tv

A publicação de hoje é especial pois conta com a participação do cineasta maranhense Cícero Filho. Diretor e roteirista do famoso Ai que vida! e dos filmes Entre o Amor e a Razão e Flor de Abril, ele costuma colocar em suas produções temas ligados às tradições culturais do nordeste, em especial aos Estados do Maranhão e Piauí. Em comemoração ao dia do Cinema Brasileiro, o convidei para falar um pouco sobre sua experiência em produções cinematográficas. 

Acessível, simpático, humilde e certeiro em suas posições, Cícero aceitou responder minhas perguntas com naturalidade e acredito que seu modo de fazer cinema serve de inspiração aos demais cineastas que pretendem mostrar em suas produções aspectos específicos de sua vivência e região.

De que modo você classifica seus filmes?

São filmes autorais. Nasceram da minha necessidade de representatividade, de identificação acima de tudo. Eu não conseguia me ver nos filmes com temáticas nordestinas, com interpretações tão forçadas, feitas por atores sulistas, como a gente via. Cada região do Brasil tem uma peculiaridade muito grande na linguística, uma forma muito especial de falar português. A gente não fala só baianês, né? “Oxente”, não. O oxente não é generalizado para todos os estados como a gente via “mainha, painho”... 

Eu sentia muito essa vontade de me ver dentro da tela. Com a minha forma de falar, de agir, minha cultura com representatividade. O meu cinema é um cinema de representatividade do meu estilo de vida, da minha região, que é o Maranhão e também representei o Piauí, no Ai que vida!

Então, eu o defino como um cinema autoral, um cinema de borda, pois está na borda da grande indústria. Cinema de Autoria.

Que tipo de dificuldade você já enfrentou para produzi-los?

As dificuldades sempre foram muitas. Nós vivemos numa região do Brasil onde a prática de realização cinematográfica é bem tímida. Não é tão grande quanto na região Sul e Sudeste do país em que os filmes são feitos de forma mais industrializada. 

Aqui no Nordeste, essa prática é feita mais de guerrilha mesmo, de manifesto. As pessoas que fazem cinema aqui são pessoas que são resistentes. Elas fazem cinema com as “armas” que elas têm, com as pessoas que elas têm, com as condições que elas têm. E não é uma tarefa fácil. 

Eu lembro que quando eu fiz Ai que vida!, minha equipe era resumida a mim e mais 5 pessoas na parte de produção. Eu mesmo acumulei diversas funções para o filme acontecer. Então, dificuldades são desde a logística, a produção, a pós-produção e depois no lançamento “Onde vou exibir o filme?”. 

Eram dificuldades diárias, muito grandes. Mas que a gente enfrentou com bom-humor, com nosso velho jeitinho brasileiro e conseguiu driblar todas elas de forma bem-humorada. Sempre muito positivo, vendo as coisas pelo lado bom da vida, sabendo das nossas limitações. Acho que é importante também a gente ter essa consciência. Mas nunca nos conformando com as impossibilidades, sempre indo a frente, seguindo adiante.

Como é o modo de distribuição?

A forma de distribuição dos meus 3 principais filmes se deu em cinemas na época, de forma direta. Eu batia na porta dos grandes cinemas, até conseguir colocá-los em cartaz. Depois vendia os DVDs de forma direta também. Sempre foi muito corpo a corpo. Depois, teve o "boomda pirataria. Com Ai que vida!, por exemplo, se propagou de boca-a-boca mesmo. 

E hoje a gente tem um canal no Youtube, que é o TvM filmes, onde colocamos nossos trabalhos de forma gratuita para que todos os fãs das nossas obras possam estar lá conferindo.

Poster do filme "Flor de Abril" - Imagem: CineBrasil
Poster do filme "Flor de Abril" - Imagem: CineBrasil.Tv

Tanto em Ai que vida! como em Entre o Amor e a Razão são retratados temas de forte teor social, você acredita que o cinema pode conscientizar as pessoas sobre questões sociais?

 As questões sociais são sempre abordadas em meus filmes. São mais uma forma de manifesto

Eu acho que a gente tem que saber utilizar as nossas ferramentas para também manifestar. A minha forma de manifesto é justamente essa, abordando esses temas, trazendo eles para a discussão. 

No caso do Ai que vida!, da política regional, da política local. Esse jeito de fazer política nas pequenas cidades do país, nos rincões das nossas pequenas cidades, interior. Esse jeitinho, manejo, que nunca vai trazer benefícios concretos para ninguém. Ninguém ganha com isso. 

No Entre o Amor a a Razão, a gente aborda a questão do pobre brasileiro e nordestino e das dificuldades que ele encontra por não ter educação. Por ter que sair de sua terra, de sua casa, o êxodo rural, tentar a sorte nas grandes cidades. Acontece uma sequência de catástrofes dentro da  vida dos personagens. É um filme de desconstrução. É um filme de crítica falando sobre essa questão da busca. Quando você busca algo, você perde algo. Quando Eliseu, o protagonista, sai de sua casa e vai tentar a sorte em Teresina, ele deixa para trás sua família. Ele vai buscar coisas boas e acaba perdendo outras coisas boas. Será que não era melhor ter ficado lá? 

Não só a questão do êxodo rural, mas também as questões de classe. Dos ricos que saem mais beneficiados na justiça do que os pobres e por aí vai… Mas a justiça sempre prevalece no final. Isso é importante. Eu gosto de ver por esse viés, que a justiça demora, tarda mas não falha. Não falhou no Ai que vida! E não falhou no Entre o Amor e a Razão.

Que filme nacional é o mais marcante para você?

Existem muitos filmes bons nacionais e acho que todo brasileiro deveria assistir filmes nacionais. E isso deveria ser aplicado até nas escolas também. 

Eu particularmente sou muito fã do filme Central do Brasil de Walter Salles. Sou encantado com aquele filme. Fernanda Montenegro impecável. A história impecável, sabe? Aquela fotografia, aquela trilha… tudo ali é perfeito. Até hoje eu não me conformo como aquele filme não levou um Oscar pelo menos de melhor atriz. É imperdoável para a Academia isso. 

Outro diretor que eu gosto bastante é o  Fernando Meirelles com Cidade de Deus. Um filme excelente. Os Narradores de Javé da diretora Eliane Caffé. Fantástico também. 

Quais são suas referências em cinema no Brasil? E no exterior?

As minhas referências de Cinema são poucas. Eu não sou uma pessoa que assiste muitos filmes, por incrível que pareça. Às vezes os outros pensam que eu assisto muitos filmes, mas eu não assisto muitos não. Eu sou uma pessoa que assiste o que me interessa. Além dos que eu já citei, eu gosto dos filmes do Almodóvar, por exemplo, são filmes que me interessam bastante. E eu sou muito influenciado pela sua personalidade. Eu absorvo a personalidade, tipo do controle, até porque ele é um diretor de autoria. Ele escreve as próprias histórias. Eu sou um diretor que escrevo minhas próprias histórias e acho muito interessante.

A Pele que Habito - Imagem: AdoroCinema
A Pele que Habito, filme de Pedro Almodóvar - Imagem: AdoroCinema

Você já retratou a pobreza, o desemprego, a questão política, as dificuldades da saúde pública, entre outros temas. O que se pode esperar de Babaçu Love, que está em produção?

Em Babaçu Love, o que as pessoas podem esperar é um filme mais maduro, um Cícero mais maduro. A gente vai sim voltar a trabalhar questões sociais. Eu quero mostrar o Brasil. É um road movie, um filme em movimento. 

Conta a história de uma banda chamada Babaçu Love. Formada por integrantes de uma mesma família. Uma banda que busca e almeja o sucesso. A gente vai retratar esse trajeto de uma pequena banda do interior fictício chamado Ramadinha em busca do estrelato. Como é alcançar o sucesso? Como é esse mercado da música? Como é nadar nesse mar infestado de tubarões que é meio artístico? 



Alinhado a isso, a gente vai trabalhar questões como Educação, que é a base de tudo, do país. Questões ambientais, o universo das quebradeiras de coco da baixada, e a implementação da Lei do Babaçu Livre, quando ela foi instaurada aqui no Maranhão. É uma lei que protege a palmeira e dá livre acesso das quebradeiras de coco entrarem em terras privadas para colher, catar o coco e usá-lo na fabricação de sabonete, carvão, adereços, óleo, dentre outros, pois da palmeira se aproveita tudo. Então a gente vai fazer também essas referências. 

Questões sociais vão estar muito intrínsecas ali dentro, serão muito fortes. Eu pretendo adaptá-las da melhor forma possível, da forma mais fiel possível para que o espectador não tenha só um entretenimento, porque é uma comédia musical. Mas também saia refletindo sobre esse Brasil tão rico e imenso que nós temos. 

Procurar dar mais visibilidade a essas pessoas que estão à margem das grandes indústrias e valorizar realmente quem está lá naquele lugarzinho distante, que tem sim o seu valor e que contribui sim para que o Brasil seja hoje o que ele é. Um lugar grande, um Brasil rico, um Brasil forte.

O que esperar do cinema brasileiro no cenário pós-pandemia?

É preocupante esse atual cenário que o Brasil enfrenta além da pandemia, que é algo muito ruim para os artistas, pros cinemas, pros teatros, para os realizadores de eventos, de música, dança. Todos nós estamos sofrendo muito já com a pandemia e temos também uma questão que está nos preocupando bastante que é a questão política. Está havendo um desmonte da cultura. 

Nós tínhamos um Ministério e ele vira uma Secretaria Especial da Cultura e simplesmente tudo travou. Tanto Ancine, quanto Incentivos, apoios.. Ou seja, não é um governo que agrega. É um governo que cria atritos. Então, para a classe, é um desagrado muito considerável. A gente se sente desamparado. Mas nós não vamos parar, vamos continuar firmes e fortes. Fazendo o que a gente ama. Realizando o que a gente ama. E seguiremos com um coração cheio de esperança que dias melhores virão. 

Eu espero que a gente tire desse momento de pandemia um grande aprendizado sobre as nossas ações com o planeta, principalmente, como estamos nos relacionando com as pessoas e politicamente também. 

Central do Brasil : Foto
Central do Brasil, filme de Walter Salles - Imagem: AdoroCinema

Qual a importância de prestigiar o cinema nacional?

É sempre importante prestigiarmos o cinema nacional. Nós estamos prestigiando o que nós temos de melhor na nossa representatividade. Nós estamos prestigiando o nosso bem, a nossa riqueza, o nosso patrimônio material. E eu fico triste quando vejo as pessoas acharem que filmes nacionais, todos eles, são ruins. Existem filmes estrangeiros também muito ruins. Mas também existem grandes obras, coisas com muita qualidade. As pessoas precisam parar de generalizar as coisas e procurar ver que existem sim bons produtos, existem sim boas histórias que precisam de espectadores para contar, para serem consumidas. Tem muitos filmes bons brasileiros. 

  
Cícero Filho é um cineasta nordestino, nascido na Cidade de Poção de Pedras, estado do Maranhão. Formado em Jornalismo pela UNIFSA e Pós-graduado em Cinema, Vídeo e Fotografia pela Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo. Roteirizou e dirigiu filmes de sucesso de público e crítica como a comédia AI QUE VIDA, os dramas ENTRE O AMOR E A RAZÃO e FLOR DE ABRIL. Atualmente, Cícero Filho é o diretor cinematográfico da TvM FILMES, agência e produtora de cinema fundada em 2009.



Imagem de apresentação:
  • Elenco do filme "Ai que vida!" - Imagem: CineBrasil.Tv

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