Reality Shows: Palanques discursivos num mundo multi-tela


O que está por trás do que você vê na TV? Quem me conhece sabe que não sou muito fã de “reality shows” mas acredito que, como qualquer outro produto cultural, seja interessante analisar seu conteúdo e formato para compreender o que de fato chama a atenção do público e tanto gera interação.

Acredito que todo formato de programação nos comunica alguma coisa e pode indicar princípios discursivos que muitas vezes não vemos a “olho nu”. Por isso, compartilho aqui uma análise com base em minhas percepções e algumas leituras sobre o assunto incluindo referências a 1984 e Jogos Vorazes.

O que são Reality Shows?



Reality Show ou Reality Televisivo é um tipo de programa de televisão baseado na vida real com participantes reais, geralmente vivendo uma experiência de confinamento assistida por múltiplos olhares através de câmeras

No exterior, “The Bachelor”, “Keeping Up with the Kardashians”, “American Idol”, “The X Factor” e “Queer Eye” são alguns dos exemplos mais famosos. Já no Brasil, “De férias com o ex”, “Catfish”, “Masterchef”, “Esquadrão da Moda”, “Power Couple”, “A Fazenda” e “Big Brother Brasil” são alguns dos mais populares.

Um pensamento que me é inevitável todas as vezes que reflito sobre este tipo de programação que envolve múltiplas câmeras no mundo contemporâneo, é o de relacionar o livro de George Orwell, “1984”, à situação em que nos encontramos hoje. 

Ele traz questões que vão muito além da subversão de privacidade, trata-se de questionar a autoridade de governos totalitários ou autoritários (como quiser chamar). Mas, ainda assim, vejo que a figura do Grande Irmão (Big Brother) está um tanto quanto vinculada ao papel dos espectadores hoje em dia. E por que não também vinculada à figura de grandes “sistemas” por trás do que assistimos? Ou até mesmo ideologias? Essa ilustração não é nova...

Num estudo apresentado na Intercom em 2008, cujo título é A influência dos Reality Shows na sociedade contemporânea, diz que:

 “o fator preocupante na influência que esses programas podem exercer está na questão da visibilidade e do controle do poder, prova disso é que o mundo fictício de Orwell nunca esteve tão próximo do mundo real, com câmeras espalhadas em todos os lugares que e em alguns casos estão até nas ruas, além de exemplos no mundo de controle sobre o pensamento das pessoas”. (pág. 5, grifos meus)

Esses vínculos conduzem a uma reflexão muito interessante sobre a sociedade e o indivíduo se tratando de uma relação entre o público e a mídia. Assunto que não é novo se for pensado dentro de estudos da Comunicação. Porém, o gênero televisivo é recente, segundo o artigo citado anteriormente. 

Renabarcellos faz uma sucinta e interessante análise sobre esse gênero introduzindo-o como um 

tipo de programa televisivo de entretenimento e adestramento cuja função é de aguçar a curiosidade dos telespectadores sobre o comportamento das pessoas confinadas e levá-las a adotar uma determinada forma de ver o mundo e de interagir”. (grifos meus)

Eu sei, eu sei... parece um pouco exacerbado. Mas, tomando como exemplo o BBB20, você já parou para pensar em como várias das atitudes dos participantes se tornaram uma faísca que atiçou os pensamentos de muitos telespectadores moldando de certa forma o modo como muitos vêem tais situações?

A identificação com o público e o mito da queda da TV



Com a acessibilidade de conteúdos audiovisuais por meio da internet, muitas pessoas têm deixado de assistir às programações televisivas (apesar de ainda haver um público fiel considerável). Mas para voltar a encher os olhos dos espectadores que se distanciaram do televisor, as emissoras têm desenvolvido a ideia de causar no público a impressão de estar no controle. 

Isso já era claramente exemplificado em Telenovelas, cujo desdobrar dos capítulos segue, muitas vezes, a opinião do público. De semelhante modo, os reality shows, observando as movimentações das pessoas nas redes sociais vêm trabalhando para gerar a identificação do público com os programas buscando novos modos de interação.

Ou seja, o mito de que a internet vai “desbancar” a televisão é dissipado, pois ela tem se reinventado com programações que buscam envolver mais aqueles que a assistem. Segundo John de Mol, criador da versão original do BBB e do The Voice, em uma entrevista para o IstoÉ (2014), a questão da perda de audiênciaé como um estádio: se há bons jogadores, há público. Precisamos fazer bons programas.

Um grande exemplo que foi visto esse ano, e que acabou superando a expectativa, foi o BBB20. Que quis inovar colocando como alguns de seus participantes, pessoas com influência na mídia com o intuito de gerar identificação com os espectadores. O próprio Boninho, diretor do programa, passou a interagir mais com o público nas redes sociais ao responder e acatar sugestões. E funcionou… 

Mas o que tanto atrai a atenção das pessoas em um reality show


Na mesma entrevista que citei anteriormente, John de Mol fez uma constatação interessante a respeito da criação de um de seus programas, “Utopia”, dizendo que ao analisar as últimas tendências da época, ele e sua equipe perceberam “que as pessoas estão infelizes, com medo do futuro, preocupadas com sua situação financeira”. 

Assim como essa percepção de John serviu de pano de fundo para a criação do programa dele, é possível perceber um dos porquês da versão brasileira do BBB ter sido tão atrativa ao observar o contexto similar em que vivemos estes dias.

Ainda segundo de Mol, “os reality shows são o espelho da sociedade” por mostrarem “pessoas que vivem ao seu lado, que você reconhece, estão na rua”. 

Talvez este raciocínio não esteja tão em voga ultimamente, pois os participantes dos realitys não são mais pessoas tão próximas do estilo de vida de muitos brasileiros, mas se for parar para pensar... ainda há um pouco de verdade nisso.

E é se aproveitando desse “pouco de verdade”, que a mídia propõe personagens em seus reality shows, que querendo ou não, se tornam um padrão que varia apenas em detalhes.

Participantes-Personas & Jogos Vorazes


Se você reparar bem em boa parte de programas do gênero, há perfis que se repetem continuamente… Segundo Renabarcellos:

 “os telespectadores são seduzidos por toda esta encenação e não percebem que os participantes usam máscaras (de vilão, de vítima, de símbolo sexual etc.) e, por consequência, indiretamente, estão “consumindo” valores distorcidos. Um verdadeiro desfile de máscaras e violência psicológica.

Pensando dessa forma, a ilustração de “desfile de máscaras e violência psicológica”, me remete ao gênero nos livros da trilogia “Jogos Vorazes” de Suzanne Collins, que foram adaptados para o cinema e renderam grande audiência e lucro. 

Na ficção, jovens de Panem são sorteados para uma competição televisionada em que terão literalmente que sobreviver ao massacre ao qual são submetidos com os demais participantes.

Os personagens têm mais chances de sobreviver se são favoritos do público e dos patrocinadores, que enviam elementos que podem ser fundamentais no espaço dos jogos. Refletindo nisso… usei alguns dos personagens do romance nos filmes para ilustrar exemplos de personas que estão presentes em quase todo reality e espero que você, leitor, faça suas próprias conexões.

(Cato, interpretado por Alexander Ludwing)

Carreirista, Jogador(a) ou Estrategista: está ali para competir, está disposto a ganhar mesmo que isso custe sua própria reputação ou prejudique e até machuque outras pessoas. Ele só se esquece que uma das regras é atender o que pede a audiência e que "seu jogo" pode não estar de acordo com isso.

(Johanna Mason, interpretada por Jena Malone)

Símbolo Sexual ou Patricinha/Mauricinho: é quem se preocupa demais com a própria aparência a ponto de esnobar os demais participantes por achar que sua forte personalidade e posicionamento visível no jogo são suficientes para fazer com que o público se engaje.


Camuflagem ou planta: pouco aparente, evita exposição e apesar da visível fragilidade, mostra-se uma personalidade ativa em momentos estratégicos do jogo, o que faz com que seu potencial extrapole as iniciais expectativas de muitos.


Marketeiro(a): é quem consegue comunicar bem a sua mensagem e atrair a atenção por meio de simples atos que podem ser estratégicos do ponto de vista do jogo fazendo com que muitos duvidem da veracidade de suas ações.

Muitos outros “títulos” que emergem das ondas das redes sociais também podem ser incluídos aqui…

Em suma, o que penso sobre a tal programação em relação às personas, é que as pessoas confinadas agem como em uma ficção. Falando como acham que o público irá se identificar, agindo conforme pensam que o público vai gostar e tomando posturas que acreditam atenderem às expectativas (novamente) do público

A preocupação constante com o que o público está vendo ou pensando torna óbvio que o participante não irá agir com naturalidade. E futuramente, isso poderá fazer com que fora do jogo, agindo bem ou mal, ele esteja “condenado” a ser taxado como sua persona no programa, podendo assim, perder sua privacidade ou a proteção da personalidade também fora do jogo.

O que o público pensa X  O que é


O mais assustador disso tudo, na minha opinião, é que os espectadores têm consciência, por mais branda que seja, de que há um raciocínio por trás do que assistem que as manipula de alguma forma. Porém, preferem não questionar isso…

Voltando a citar o artigo da Intercom (2008), ele diz que a atual sociedade está vivendo em um mundo paradoxal, pois 

ela sabe do poder que a mídia possui, e tem o conhecimento também da ideia de controle de quem vê sem ser visto está nas mãos dessa mesma mídia e também do governo, mas mesmo assim essa sociedade se entrega a programas do gênero reality show, em que a privacidade das pessoas praticamente não existe” (pág. 12)

Segundo Gabriel Priolli, em matéria na Folha de S. Paulo (2004), não há espontaneidade no jogo, pois, afinal, “todos estão ali como participantes de um jogo que é permanentemente conduzido de fora por uma vasta equipe de diretores, roteiristas e editores”.

Ainda segundo ele, “Ninguém é "ele mesmo" no programa, mas apenas "um certo ele", totalmente circunstanciado pelo isolamento, o ócio, a convivência compulsória com estranhos e a submissão a um amplo conjunto de regras e rotinas que permitem ao espetáculo funcionar”.

Ou seja, para Priolli, o(s) reality(s) não transmite(m) a verdade, mas uma versão moldada da realidade vivenciada no ambiente criado para a programação. O que, de certo modo, devo afirmar que concordo.

Para não concluir...

O modo como o público tem visto as ações das pessoas dentro do jogo torna visível a crescente preocupação em regrar a personalidade para que se amolde a um "padrão". O que é uma ironia em tempos de "seja você mesmo". Seja, desde que não interfira na vida de outrem (mas não é isso o que o espectador tem feito? Isso é assunto pra outro post...).

De um tempo pra cá, nos tornamos juízes e especialistas superficiais. Num mundo de múltiplas telas, a nossa postura social tem se empenhado em projetar discursos em plataformas como os Reality Shows

Eu sei que se você assiste algum reality, possivelmente não é para refletir sobre alguma questão da vida, mas sim, como um tipo de entretenimento. Isso não está errado. 

Porém, se quiser uma dica, sugiro que olhe duas vezes e tente identificar quais são suas percepções diante do que você assiste. Garanto que esse exercício de reflexão poderá ser útil e te dará novas perspectivas.

Afinal, acredito que sempre há algo além de tudo o que vemos, inclusive em Reality Shows...


Fontes:
Você gosta de assistir Reality Shows? O que pensa a respeito? O que achou do formato do conteúdo?

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